Esta é uma republicação de um artigo escrito em 15 de janeiro de 2010, com o título: "O Haiti e a maldição de Cam." Para quem gosta de concisão aviso logo que ele envolve fatos históricos e teológicos, portanto, é um pouco longo, mas não tanto quanto a luta do povo africano em África ou na diáspora forçada. Vale a pena, aos atarefados eu sugiro uma "leitura dinâmica"- Mano Zé
Hoje pela manhã, eu e
minha filha revíamos o vídeo onde George Samuel Antoine quebrava todas as leis
da "diplomacia". Ele fez isso ao comentar o terremoto de 7 graus na
escala Richter que atingiu o Haiti, país mais pobre das Américas, na última
terça-feira, dia 12 de janeiro. George
Samuel Antoine é Cônsul do Haiti no Brasil, e numa entrevista veiculada pelo
SBT, Sistema Brasileiro de Televisão, apontou como possível causa do terremoto
certa maldição que pesa sobre o povo africano. Ao fazer tão infeliz comentário,
o Cônsul não sabia que ainda estava sendo filmado. E fez a seguinte declaração: "A desgraça de lá tá sendo uma boa para a gente aqui ficar conhecido (…) Aquele povo africano acho que de tanto mexer com macumba, não sei o que á aquilo (…) O africano em si tem maldição. Todo lugar em que tem africano tá f…" .
Após ver o vídeo, deparei-me com outro artigo sobre o
terremoto que tem causado comoção mundial. Em tal artigo o tele-evangelista
estadunidense Pat Robertson explica as "desgraças" haitianas como
sendo conseqüência de "pactos" ocorridos há duzentos anos entre os haitianos
e o demônio.
Naquele momento lembrei-me do tempo da Fateo - Faculdade de
Teologia, em São Bernardo do Campo - SP.
Não que lá eu tenha ouvido besteiras tamanhas, mas porque,
ao fazer as pesquisas para um capitulo de meu TCC sobre os aspectos teológicos
usados pela Igreja Cristã para legitimar a escravidão negra, cheguei a entrar
em crise.
Entrei em crise ao ler sobre tantas desgraças feitas em nome
de Deus, por pessoas que diziam acreditar Nele, sendo seus representantes,
alegando até mesmo serem "cabeças visíveis" do Corpo de Jesus, a
Igreja. Minha crise foi com os homens que diziam representar Deus e não com
Deus, portanto minha fé abalou-se, mas não pereceu.
Ao estudar os materiais coletados para a Monografia, eu
passava horas meditando sobre que tipo de espírito movia os teólogos que
disseminaram o pensamento expresso no comentário infeliz do Cônsul sobre os
africanos.
Ao rever o vídeo, não o censurei, pois o que ele disse não é
exclusivamente fruto do pensar dele, antes, é fruto de sua crença, daquilo que
aprendeu ou ouviu de algum religioso, pois as malfazejas palavras dele se
baseiam em argumentos que no passado foram defendidos pela Igreja Cristã para
legitimar a escravidão negra. Eduardo Hoornaert afirma:
O texto de Gênesis 9 pode ser chamado o texto
"gerador" da ideologia escravista cristã. Ele se desdobrou durante a
história da teologia e especialmente da patrística em numerosas reflexões,
comentários, elucubrações, tendo como finalidade justificar a existência da
escravidão como instituição dentro do próprio corpo cristão. [...] Na cultura
cristã, a famosa maldição de Cam e de Canaã se tornou uma espécie de artigo de
fé, um arsenal de armas ideológicas cuja capacidade de alvo supera de longe a
dos arsenais de guerra mais sofisticados, e que está longe de ser desmantelado nos
dias que correm.
A prova de que a Igreja Cristã cria que os negros eram os
herdeiros da maldição lançada por Noé sobre Cam, evidencia-se numa oração em
favor da conversão ao catolicismo dos povos da África Central. Tal oração, que
parte da Secretaria da Sagrada Congregação das Indulgências, Roma, em 12 de
novembro de 1873, convida os católicos a rezarem assim:
"Rezemos pelos povos muito miseráveis da África Central
que constituem a décima parte do gênero humano, para que Deus onipotente
finalmente tire de seus corações a maldição de Cam e lhes dê a benção que só
podem conseguir em Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor: Senhor Jesus Cristo,
único Salvador de todo gênero humano, que já reinais de mar a mar e do rio até
os confins da terra, abre com benevolência o seu sacratíssimo coração mesmo às
almas mui miseráveis da África, que até agora encontram-se nas trevas e nas
sombras da morte, para que pela intercessão da puríssima Virgem Maria, tua mãe
imaculada, e de São José, tendo abandonado os ídolos, os etíopes se prostrem
diante de Ti e sejam agregados à tua santa Igreja."
É justo ser imparcial aqui, esclarecendo que tais argumentos
também foram usados pelos cristãos protestantes, para fazerem uso da
mão-de-obra escrava negra.
Sem querer polemizar, mas, sendo sincero no que eu creio, eu
penso e estou escrevendo, quero tecer alguns comentários sobre o demônio e seus
instrumentos humanos e estruturais.
Inicio dizendo que é muito fácil satanizar os outros, vendo
sempre o diabo naquilo e naqueles que são diferentes, fechando os olhos para a
ação do mal no meio de nossos sistemas religiosos os quais divinizamos.
Portanto, olharei para dentro de minha religião cristã, a fim de resgatar fatos
históricos, que pessoalmente interpreto como situações, onde cristãos atuaram
como protagonistas, servindo a causa do mal.
Salvo no satanismo declarado, a luz das Escrituras sagradas
de quaisquer religiões, o demônio é sempre o portador de opressão e escravidão.
Assim sendo, não negando a pessoalidade dele, para os judeus
dos dias de Jesus de Nazaré, o maligno era o Império Romano e suas Legiões.
Para os povos que habitavam as Américas os
"demônios" chegavam deslizando sobre as águas em suas imponentes
naus. Eram portugueses, eram espanhóis, como no caso de nossa tão sofrida
América Latina.
Os astecas, só depois de verem muitos dos seus mortos, se
deram conta que os espanhóis não eram deuses, embora falassem e batizassem em
nome de um Deus.
A História nos mostra que, na colonização das Américas, o
"demônio" se personificou na escravidão, opressão e morte,
experimentadas em grandes escalas pelos nativos, depois do contato com aqueles
que traziam a "cruz" e o "credo".
Ou seja, na visão dos povos colonizados, tidos pelos
europeus como "bárbaros pagãos" o mal sempre veio junto com os ditos
"civilizados cristãos".
Ver tanto mal causado em nome de Cristo, que só pregou,
viveu e morreu pelo bem da humanidade, me deixou em crise, mas, buscando
refúgio na oração e na meditação das Escrituras, com a graça de Deus pude
superá-la. E minhas leituras da Bíblia e da História me convenceram
definitivamente que, não fora o Espírito Santo a força motriz de tantas
desgraças, mas, sim, a ambição, o preconceito, o racismo e acima de tudo, o
amor ao dinheiro, raiz de todos os males da humanidade.
O amor ao dinheiro e ao poder dele derivado fazem surgir
ditadores de todos os matizes, ou seja, independente da cor da tez, o espírito
ditatorial historicamente possuiu desde ao alemão Adolf Hitler até o negro
ugandense Idi Amin Dada Oumee, conhecido como: "O talhante de
Kampala", "senhor do horror" e "o carniceiro da
África".
Estima-se que Idi Amim Dada, que se manteve no poder de 1971
a 1979, tenha matado entre 300 mil a meio milhão de pessoas durante o seu
regime ditatorial.
O Haiti, ou ao menos, fragmentos dele, "e infelizmente
do que há de pior nele", tornou-se bem conhecido do povo brasileiro, desde
que o Brasil aceitou comandar a missão militar da ONU enviando 1200 soldados
para ocupá-lo, numa forma de ajuda humanitária.
Atualmente o país tem tido espaço na mídia mundial, devido
ao terremoto que matou dezenas de milhares de pessoas, inclusive militares
brasileiros e a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns, fundadora e
coordenadora nacional da Pastoral da Criança.
Talvez o que pouquíssimas pessoas saibam é que o Haiti
fulgura na História como a primeira nação americana que se viu livre da mais
execrável vilania que já se viu debaixo do céu. A existência da sofrida
população haitiana esta ligada à história da escravidão, à luta e libertação
dela. Libertação que veio através da revolta dos negros escravizados. E, é por terem
obtido a vitória numa revoltosa luta pela liberdade que Pat Robertson declara
que o diabo ajudou aos negros haitianos.
Contrariando Pat Robertson, julgando por aquilo que está em
Êxodo capítulo três, a Divindade que se coloca ao lado dos escravos é Deus, não
o demônio. O demônio está do lado do opressor, personificado em Faraó e seus
magos, que fazem de tudo para manter o povo sob o jugo da escravidão.
Deus se opõe à escravidão, pois ela tira o que existe de
mais sagrado para o ser humano, a liberdade. Pela liberdade o ser humano é
capaz tanto de matar, como de morrer. Assim como, muitos escravos faziam,
optando pelo suicídio como fuga da escravidão.
A escravidão citada pela Bíblia é totalmente diferente da
imposta aos povos africanos pelos europeus, diferindo-se também da escravidão que existia entre tribos
africanas.
Deus não amaldiçoou aos negros, ao contrário do
"racistacinio" do Cônsul haitiano, George Samuel Antoine, Javé os
amou! Amor expresso nesta declaração: "Não sois vós para mim, ó filhos de
Israel, como os filhos dos etíopes?" (Amós 9.7).
Creio que, quem estava ao lado, ou a frente dos negros
haitianos na rebelião que levou à libertação, era Deus e não o Maligno. Veja um
trecho da história da revolução haitiana:
O ano de 2004 marca o bicentenário da maior revolta de
escravos da história, que conseguiu de forma genial derrotar os mais poderosos
exércitos da época: francês, inglês e espanhol. Genial, porque aproveitou a
experiência militar dos negros trazidos da África para trabalharem até a morte
como escravos na "Pérola das Antilhas", a mais lucrativa colônia da
época. Usando técnicas de guerrilha, entre 1791 e 1804 o exército de libertação
liderado por Toussaint e Dessalines fustigou incessantemente as forças regulares
das potências colonialistas até obter a vitória, na maior epopéia de libertação
jamais vista pela Europa. A Revolução Haitiana foi feita pelos haitianos, mas
sua vitória pertence a todos os povos, por demonstrar, no alvorecer do século
XIX, a possibilidade real de derrotar um inimigo várias vezes mais poderoso.
Dessa forma, os haitianos destruíram o mito da invencibilidade da Europa, e
deram o exemplo para as lutas de libertação nas colônias da América Latina.
O exemplo de liberdade não poderia sobreviver impunemente:
por mais de 60 anos os Estados Unidos impuseram bloqueio econômico ao Haiti, e
a França impôs pesadas compensações pela perda da lucrativa colônia,
estrangulando a economia do pequeno e recém-criado país. O Haiti foi a primeira
nação americana livre da escravidão. Nesses dois séculos desde a independência,
a ilha foi alvo dos interesses colonialistas e imperialistas, sendo ocupada
pelos Estados Unidos entre 1915 e 1934, levando à morte milhares de haitianos.
Entre 1957 e 1986 as ditaduras de Papa Doc e Baby Doc
espalharam o terror e resultaram em revolta popular. Em 1990, defendendo um
programa de governo popular, o ex-padre Jean-Bertrand Aristide foi eleito com
70 % dos votos, para ser deposto por golpe militar apoiado pelos Estados Unidos
em 1991.
De volta em 1994, agora com o apoio dos EUA, e com posições
políticas pró-imperialistas, Aristide governou com o apoio de milícias armadas.
Porém, devido à forte oposição popular, a situação tornou-se
insuportável."
Argumento que: se considerarmos que os escravistas eram
cristãos que diziam crer em Deus, e tomando a sério a explicação de Pat
Robertson de que os negros se aliaram ao diabo para conseguirem a liberdade,
somos obrigados a acreditar que Deus pela primeira vez na história perdeu para
o diabo, pois como acima citado no alvorecer do século XIX, o povo haitiano
derrotou um inimigo infinitamente mais poderoso do que eles.
Eu prefiro acreditar que a vitória foi possível por estar
Deus ao lado dos oprimidos e não dos opressores, isto independente da religião
deles. E que a atual miséria do Haiti se deve ao abandono e embargos impostos
pelas nações que anteriormente exploraram o país e os escravos.
Quanto ao terremoto, acredito que qualquer país que esteja
situado sobre as bordas de placas tectônicas, independente do credo religioso
que professe, está sujeito a ser atingido por um terremoto.
Se os povos do Haiti fossem brancos, teriam feito até filmes
sobre a revolução que lhes concedeu a liberdade, e tal vitória seria creditada
à ajuda de Deus, mas como é um país majoritariamente negro, é mais fácil,
explicar a vitória e as desgraças lá ocorridas como frutos de pactos
demoníacos.
Penso que o diabo é um ser pessoal, inteligente, que atua no
mundo, mas, muito mais do agir em e através de pessoas, sua maldade possui
alcance maior quando ele se apossa de estruturas, ideologias e instituições. E
sua ideologia preferida tem sido a racista, que tem causado milhares de
conflitos e mortes ao longo da História.
Infelizmente, a História e as vigentes injustiças
decorrentes da escravidão impedem nosso silêncio sobre a questão negra, pois a
ideologia racista deixou suas marcas satânicas até mesmo dentro da Igreja
Cristã. Sim, até mesmo igrejas podem ser usadas pelo mal! Pois, serve ao diabo
toda igreja cuja pregação aliena, escraviza, impede a pessoa de crescer e de
desenvolver o seu pensar. Toda igreja que se coloca ao lado dos poderosos deste
mundo traiu o Evangelho, negou a fé, se tornando pior do que os infiéis.
Religião que não incentiva o saber e crescer humano é
instrumento do mal, pois o diabo é o principal interessado em manter as pessoas
na ignorância. Igreja que não incentiva o saber, buscando unir piedade vital e
ciência, não proclama a Boa Nova de Jesus, pois o Evangelho de Cristo é libertador
e não aprisionador.
Toda vez que uma religião oprime, mata, discrimina, usando
do poder político para se expandir, deixa de servir a Deus, passando a ser
útil, ainda que inconscientemente, àquele que é o oposto de Jesus Cristo e
pregando o oposto à verdade, o oposto do amor, o oposto da justiça e da paz.
Relacionar o africano a maldição é desconhecer as
Escrituras, aceitando de forma acrítica interpretações teológicas distorcidas
que serviram aos interesses escravistas que se firmaram na Europa com as
Grandes Navegações e a descoberta dos chamados "Novos Mundos". É
demonstrar ignorância quanto ao Cristianismo de Matriz Afro, muito mais antigo
que o Europeu, e que permanece mais puro do que o catolicismo e protestantismo
europeu.
Concluo dizendo que: minha leitura bíblica me diz que o
demônio escraviza, mostrando-me que ele veio para roubar, matar e destruir. Com
base nesse meu pensar eu gostaria de lembrar ao Cônsul, ao Pat Robertson e a
outros que pensem igualmente a eles, que, quem praticou roubos, morticínios e
destruições de culturas e civilizações inteiras com maior eficácia e freqüência
foram os chamados colonizadores europeus.
Além desse lembrete, deixo as seguintes indagações:
Se o diabo veio para roubar, matar e destruir: qual o
espírito que se movia na cristandade, nas Cruzadas, inquisições, colonizações e
outras atitudes que mataram a milhares de pessoas?
Sendo assim, quem se aproxima mais de ligações com o diabo?
Os dominados, ou seus dominadores?
Qual espírito que se movia nas Igrejas alemãs, que as
levaram ao silêncio ou apoio ao nazismo? Excetuando o pastor Dietrich
Bonhoeffer e os outros defensores da Igreja Confessional, que se opuseram ao
regime de Adolf Hitler e por isso foram ferozmente perseguidos pelo nazismo.
Se o ocorrido no Haiti foi devido a "pactos
satânicos", como explicar então desastres naturais ocorridos em países
cristãos, tais como, Brasil, EUA, Inglaterra e etc.?
Nas infelizes palavras do Cônsul, cujo pensar é semelhante
ao de inúmeros cristãos, podemos ver que a interpretação teológica causadora da
desgraça de um continente inteiro e dos africanos na diáspora forçada, ainda
está viva e latente como mantenedora da discriminação étnica que leva a exclusão
social e ao preconceito religioso em relação ao povo negro.
É por causa de declarações como as de Pat Robertson e do
Cônsul haitiano que teólogos comprometidos com a verdade, justiça e a paz não
podem se calar! Pois, se no passado usaram e ainda hoje usam a teologia como
instrumento de alienação e discriminação, é nosso dever cristão, por fidelidade
ao Evangelho, usá-la em favor da conscientização e libertação.
Pr. José do Carmo da Silva. (Zé do Egito), afro-descendente
(descendente de africano).
Igreja Metodista do Brasil.
Fontes: HOORNAERT, Eduardo. O negro e a Bíblia: um clamor de
justiça. A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil - colônia
(um inventário) Petrópolis: Vozes, 1988.
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